quinta-feira, 26 de agosto de 2010

CAPOEIRA: PATRIMÔNIO CULTURAL (AFRO)BRASILEIRO

Por Carem Abreu, com participação de Caroline Césari

* Diretora e Historiadora do projeto “Paz no Mundo Camará: a Capoeira Angola e a volta que o mundo dá”

Fontes:


Ascom, Iphan, www.abin.gov.br, www.palmares.gov.br, Museu do Folclore, Maurício de Barros.

Desde o dia 15 de julho de 2008 a Capoeira foi registrada como um Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Patrimônio cultural imaterial são representações da cultura brasileira como as forma de ver e pensar o mundo, as cerimônias (festejos e rituais religiosos), as danças, as músicas, as lendas e contos, a história, as brincadeiras e modos de fazer (comidas, artesanato, etc.), junto com os instrumentos, objetos e lugares que lhes são associados, cuja tradição é transmitida de geração em geração pelas comunidades. O Registro aconteceu em sessão solene no Teatro Castro Alves, em Salvador e foi uma iniciativa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Ministério da Cultura. A capoeira é o 14ª saber imaterial a ser registrado, e agora, figura ao lado da ciranda de roda, do acarajé, das panelas de barro do Espírito Santo e do frevo, como um bem cultural brasileiro.

Vale lembrar: o Registro é o passo mais recente do governo em sua nova política de valorização dos saberes populares e da capoeira. No mundo capoerístico caso semelhante ocorreu somente há 75 anos atrás (1933), na ocasião em que Getúlio Vargas revogou o artigo 402, do Capítulo XII do Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, criado em 1892, referente aos atos dos “Vadios e Capoeiras”. Com essa lei a prática da capoeiragem foi considerada o primeiro crime oficial da República. Um estigma que perdurou efetivamente por longos 41 anos (1892 a 1933), inferiorizando categoricamente aqueles que lutavam por condições mais dignas para o povo negro como meros vadios, vagabundos e criminosos, dignos de todo tipo de tortura e degradação social.


Acervo Museu do Folclore/RJ

Cena do filme "Dança de Guerra", em 1968, Salvador:
jogando estão mestre João Pequeno e o pesquisador
Jair Moura. À direita, mestre João Grande observa o jogo.
Imagem cedida pelo Museu do Folclore/RJ, para
o documentário PAZ NO MUNDO CAMARÁ:
a capoeira angola e a volta que o mundo dá.

Esse estigma demorou árduos 116 anos para começar a ser quebrado aqui no Brasil. Agora com o Registro como Patrimônio Cultural aconteceu, institucionalmente, o reconhecimento do valor cultural da capoeira e da resistência de sua prática ancestral. De acordo com Márcia Santana, diretora de Patrimônio Imaterial, a diferença deste registro para o tombamento como patrimônio material (caso de edifícios históricos), é que o Registro “volta-se a ações de apoio às condições sociais, materiais, ambientais e de transmissão que permitem que esse tipo de bem cultural continue existindo”. Ela acrescenta que o registro é de significado simbólico: "Ocorre um aumento muito grande da auto-estima dessas pessoas. Embora a capoeira esteja disseminada em todo o mundo, alguns mestres da tradição oral nunca tiveram, pelo menos até recentemente, nenhum programa de valorização do seu saber".


CAPOEIRA VEIO DA ÁFRICA
Se por um lado o Registro garante uma pesquisa e análise do bem cultural e a criação de mecanismos de manutenção das tradições, muitos pontos primordiais sobre esse novo Patrimônio Cultural precisam ser elucidados. Como a própria questão da capoeira ter sido reconhecida apenas como uma cultura genuinamente brasileira. Para mestre Curió, do Grupo Irmãos Gêmeos, de Salvador, este lapso chega a ser “um desaforo”, pois “não há como negar sua origem africana”. O Mestre esteve em setembro de 2008 em Belo Horizonte, juntamente com Mestre Moraes, do Grupo Capoeira Angola Pelourinho – GCAP - participando do Seminário "Capoeira Angola e Patrimônio”, atividade do “2º Encontro Nacional de Capoeira Angola de BH”. Mestre Moraes, também se mostrou indignado com a forma como foi desenvolvido o processo de pesquisa que originou o dossiê de salva guarda. Para ele o processo aconteceu “à revelia dos mestres antigos” e através da ótica de pesquisadores e de pessoas de pouca expressão no mundo da capoeira.

O trabalho de inventariar, pesquisar e formular os conteúdos do dossiê foi delegado ao Laced, Laboratório de Pesquisa em Etnicidade Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional da UFRJ. Teve a coordenação do Prof. Wallace de Deus, com assessoria do prof. Maurício de Barros, doutor em História Social e capoeirista. Sua equipe reuniu profissionais de História, Antropologia, Psicologia, Educação Física e Artes Cênicas, em parceria com as Universidades Federais do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e a Federal Fluminense, sob a supervisão do Iphan. As pesquisas foram realizadas no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, principais cidades portuárias apontadas como prováveis origens desta manifestação e locais onde havia documentação a respeito.

Tivemos a oportunidade de entrevistar o prof. Maurício de Barros, no Rio de Janeiro. Ele explicou a nossa equipe como funcionou a dinâmica da construção do dossiê: “Você faz toda a pesquisa e detecta quais são as questões da comunidade da capoeira e a partir daí, você elabora um plano de salva-guarda, que são medidas de políticas públicas elaboradas pela pesquisa. (...) A idéia era fazer dois encontros em cada cidade para ouvir dos mestres e dos pesquisadores quais eram as questões da capoeira, e a partir daí, poder elaborar uma pauta que seguisse esse plano de salva-guarda”.

“Na verdade, a partir desse encontro (que ocorreu em dezembro de 2006) nós chamamos estas pessoas para elas falarem para o publico. No Rio, buscamos as diversas vertentes da capoeira, uma vez que o inventário não é só restrito à capoeira angola. Então buscamos o representante do Grupo Senzala (mestre Gil Velho), o Mestre Peixinho, da manifestação da chamada como capoeira de Rua, nós buscamos o Mestre Russo, de Duque de Caxias; chamamos o representante da capoeira angola do Rio: o Mestre Zé Carlos e Mestre Manuel, e pesquisadores como o Julio Tavares - o primeiro a fazer um trabalho acadêmico sobre capoeira - e outros pesquisadores que estavam envolvidos neste processo, como pesquisadores que trabalhavam com o Mestre Russo e outros que eram alunos do Mestre Peixinho. (...) Em Salvador o evento foi mais amplo, durou dois dias. Convidamos da mesma forma, buscando ampliar as vertentes: na capoeira angola convidamos o Mestre Moraes, e Mestre Cobra Mansa, atualmente Mestra Janja, que na época era contra-mestre. (...) Em Pernambuco fizemos o mesmo modelo de encontro, então chamamos os mestres locais (...) como o Mestre Pirajá, Mestre João Mulatinho, Espinhela... A capoeira angola é que não foi muito bem representada, porque tentamos entrar em contato com o Mestre Sapo e não conseguimos. E lá nós percebemos que havia uma demanda maior local, que era de reconhecimento da capoeira de Pernambuco, como uma capoeira própria, que tinha história própria e que estava de certa forma, sempre alijada pelo eixo Rio-Salvador”.


Questionado sobre o dossiê ter sido preparado por uma equipe de pesquisadores/técnicos e da “ausência” neste processo de mestres importantes para uma reflexão mais coesa, Barros afirmou: “Todos os mestres compareceram, menos Mestre Moraes. Por exemplo, eu ouvi o Mestre Moraes dizendo que não foi consultado. Mas no nosso cartaz, tem o nome dos mestres que participaram. Inclusive eu, pessoalmente não convidei o Mestre Moraes, mas as pessoas responsáveis pela organização do evento em Salvador convidaram, tanto que ele foi incluído na programação e não pôde ir. E aí, eu não sei muito bem o porque. Mas o que posso dizer é que essas pessoas foram, inclusive foram para dizer o que achavam. E nem todas concordavam... Assim, o encontro foi foco de debates, onde até mesmo o inventário era questionado. Pra quê servia? Ou seja, a própria tradição do IPHAN de ter sido criado em 1937, no Estado Novo... a presença do Governo. E nós éramos encarados como o Governo, a Instituição, quando na verdade nós fomos pesquisadores contratados, que tínhamos uma ligação com tema, e que estávamos reunindo aquelas pessoas para levantamento de pauta para saber o que elas pensavam de chegar a este plano de salvaguarda”.
Acervo Museu do Folclore/RJ
À direita, mestre Waldemar faz jogo de faca, em seu barracão.



AFRICANO QUEM BOTÔ
Sobre a questão de no registro a capoeira não ter sido considerada como um Patrimônio Cultural Afro-Brasileiro, o próprio coordenador do dossiê foi contundente em afirmar: “Seria um absurdo negar a influência africana, a própria matriz africana da capoeira. Não tem como negar isso (...) E nós fomos até Salvador para enfrentar discussão com o Mestre Curió. Porque naquela época ele fez um evento justamente com esse nome: “Capoeira Patrimônio Cultural Afro-brasileiro”. Então passamos a tarde toda conversando em uma mesa, que estava muito bem representada pela comunidade afro-descendente de Salvador, que é mais forte do que qualquer outro lugar no Brasil. E nós tentamos responder a essa pergunta do Mestre Curió e de outros mestres. Institucionalmente não tem como reconhecer a capoeira como patrimônio cultural afro-brasileiro, porque é uma iniciativa do estado brasileiro. Não tem como o Brasil responder pela África. Ou seja, teria que ser um acordo binacional para ter esse tipo de reconhecimento. Agora, a nossa perspectiva que tentamos passar, é o fato de ser do Brasil, não exclui um pertencimento afro-brasileiro... Até mesmo por uma questão burocrática, um decreto do presidente não tem como ser mudado neste nível”.


CAPOEIRA VEIO NOS LIBERTAR
A partir do registro, a capoeira passa a fazer parte do patrimônio cultural do Brasil e assegura os direitos dos profissionais da arte. Os velhos mestres terão plano de previdência especial, será estabelecido um programa de incentivo da capoeira no mundo e criado um Centro Nacional de Referência da Capoeira, além do plano de manejo da biriba, madeira utilizada na fabricação do instrumento principal da capoeira: o berimbau. De acordo com o presidente do Iphan, Luiz Fernando Almeida, o direito dos profissionais foi um dos principais ganhos do registro da capoeira. Para Maurício de Barros uma das grandes conquistas do registro é a “questão do reconhecimento do notório saber Mestre, pois durante o governo de Fernando Henrique foi promulgada uma lei que proíbe o Mestre de capoeira dar aula em escola. Não é que proíba, mas como existe o professor de Educação Física, deixa de lado a questão da Cultura Popular, do saber tradicional, que é diferenciado do saber acadêmico”.

Maurício também nos explicou como estas conquistas podem sair do papel: “o plano de salva guarda é uma forma do IPHAN levar essas propostas para os órgãos que vão tentar incluí-los. Por exemplo, a questão da aposentadoria será levada à previdência. Porque não é o IPHAN que vai cobrir a questão da aposentadoria dos Mestres. Eles vão fazer um plano e discutir isso com a Previdência Social. A questão do Notório Saber dos Mestres, eles vão levar isso para o MEC e o MEC irá baixar uma portaria, ou alguma coisa parecida, propiciando isso. Se o que está ali no plano de salva-guarda for cumprido, ou seja, se o governo conseguir estabelecer aquelas metas, acho que garante bastante coisa. Por exemplo, vai garantir o que está ali, reconhecimento do Notório Saber. Ou Seja, se tiver um concurso público, para dar aula de capoeira na Universidade da Bahia, como por exemplo, tem quem dá aula de capoeira na Universidade da Bahia, que é a aluna do Mestre Curió, porque ela tem graduação... ela tem diploma de Educação Física. Poderia ser o Mestre Curió, mas se ele fosse se candidatar a isso, ele não conseguiria. Então o Registro abre espaço até em outros lugares assim”.

Segundo informações do IPHAN o material que resultou da pesquisa faz parte do dossiê de registro e vai ser publicado na série Dossiê Iphan, que já editou 6 volumes. Ele deve também integrar o banco de dados do INRC (Inventário Nacional de Referência Cultural) desenvolvido com a finalidade de organizar a informação e disponibilizar o acesso nos limites de usos autorizados, para a natureza da pesquisa produzida para o Iphan. Com material iconográfico levantado na pesquisa foi criada uma exposição intitulada “Na Roda de Capoeira” cuja as fotos estão ilustrando esta reportagem, as quais foram cedidas gentilmente pelo Iphan e pelo Museu do Folclore, com exclusividade, para a equipe do projeto “Paz no Mundo Camará: a Capoeira Angola e a Volta que o Mundo dá”. Até o fechamento desta edição, um ano após ao Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial, NENHUMA DAS GARANTIAS do plano de salvaguarda FOI IMPLEMENTADA para a comunidade capoeirística brasileira.

Acervo Pessoal do mestre Gildo Alfinete

Mestre Pastinha com seus discípulos no Pelourinho/BA.
No jogo: Na Atividade e Albertinho da Hora. Na bateria:
Gildo Alfinete, Gaguinho, Nelson, Sapateiro, Genário
Lemuscoto, Roberto Satanás, Rui Lemuscoto e Genésio Meio Quilo.



BOX
GARANTIAS DO PLANO DE SALVAGUARDA DA CAPOEIRA

Reconhecimento do notório saber dos mestres de capoeira pelo Ministério da Educação:

Espera-se que o registro do saber do mestre de capoeira como patrimônio cultural do Brasil possa favorecer a sua desvinculação obrigatória do Conselho Federal de Educação Física, ao qual a capoeira está subordinada. A proposta pretende contribuir para que mestres de capoeira sem escolaridade, mas detentores do saber, possam ensinar capoeira em colégios, escolas e universidades.

Plano de previdência especial para os velhos mestres de capoeira:



Existe a sugestão da elaboração, junto à Previdência Social, de um plano especial para mestres acima de 60 anos que tenham tido dificuldades de contribuir com a entidade ao longo dos anos. Como se trata de uma ação de emergência, que busca acolher os mestres atuais que vivem em absoluto estado de carência, recomenda-se que esta proposta tenha implantação imediata e perdure até que os futuros mestres possam dispensar esta ação de salvaguarda.

Estabelecimento de um Programa de Incentivo da Capoeira no Mundo:


Espera-se que o Itamaraty possa inserir a capoeira nos seus programas de apoio à difusão da cultura brasileira, e desta maneira facilitar o trânsito de mestres e grupos que oferecem cursos e apresentam rodas no exterior.

Criação de um Centro Nacional de Referência da Capoeira:


Foi proposta a criação do Centro Nacional de Referências da Capoeira no Brasil, que será virtual, de caráter multidisciplinar e multimídia, com o objetivo de abrigar produções científicas, acadêmicas e audiovisuais, dentre outras.

Plano de manejo de biriba e outros recursos:


A biriba - madeira tradicionalmente utilizada na confecção dos berimbaus – é a mais utilizada, mas há outras madeiras da Mata Atlântica ameaçadas de extinção, como o pau d’arco, a pitomba, a tauarí, dentre inúmeras outras. Sugere-se o plano de manejo destas espécies nativas ameaçadas para atender à crescente demanda de matéria-prima para a confecção dos berimbaus e demais instrumentos.

Fórum da Capoeira:


O objetivo deste fórum é estimular encontros periódicos dos mestres e estudiosos da capoeira, em parceria com universidades. É notório que alguns mestres possuem conhecimento acadêmico, mas não é o caso da maioria. Pretende-se com esta medida integrar a tradição oral ao ambiente de pesquisa acadêmica.

Banco de Histórias de Mestres de Capoeira:


Com a criação desta medida serão realizadas oficinas de história oral para capoeiristas interessados em registrar as trajetórias de vida de mestres antigos. O objetivo deste banco é dar suporte e integrar o Centro Nacional de Referências da Capoeira.

Realização do Inventário da Capoeira em Pernambuco:


Existe a intenção de incentivar, auxiliar e aprofundar as pesquisas sobre a capoeira em Recife, com base nas referências indicadas durante o processo de inventário utilizado no pedido de registro.